Em 27 de fevereiro de 1994 o então presidente Itamar Franco publicou uma medida provisória, assinada no dia anterior, instituindo a chamada Unidade Real de Valor (URV), uma espécie de pré-moeda que atrelava os preços ao dólar — embora tudo fosse “convertido”, em cotações divulgadas diariamente, à moeda da época, o cruzeiro real.
Era dada a largada do que ficou conhecido como Plano Real, a série de medidas econômicas que finalmente estancaram a inflação galopante do país e preparou terreno para chegada de uma nova moeda em 1° de julho daquele ano: o real — moeda do Brasil até hoje.
À época, a imprensa ainda chamava a estratégia de “Plano FHC”, em referência ao então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, que liderou a equipe responsável pela elaboração do plano, cujos primeiros passos foram divulgados em dezembro do ano anterior.
O sucesso do plano ainda acabaria por sedimentar o percurso de FHC rumo ao Palácio do Planalto — ele seria eleito presidente da República no segundo semestre do mesmo ano e ocuparia o cargo máximo do Executivo por dois mandatos, de janeiro de 1995 a dezembro de 2002.
Em seu memorialístico livro O Improvável Presidente do Brasil, FHC comentou o que passava em sua cabeça quando aceitou comandar a Fazenda, em maio de 1993. “Meu êxito […] seria avaliado por um único critério: derrotar ou não a inflação”, afirmou. “E não uma inflação qualquer, mas uma inflação anual de 2.500 por cento!”
O ex-presidente avaliou que tinha “uma oportunidade de resolver o maior problema de gestão pública do Brasil”, mas, “se fracassasse, minha carreira política estaria acabada”, “viraria uma nota de rodapé”.
“A grande novidade do plano foi a URV, ancorada ao dólar”, analisa o economista Antonio Carlos dos Santos, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “A URV era o novo indexador para todos os preços da economia.”
Segundo o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, que integrou a equipe que criou o Plano Real, a inspiração para a URV veio de um plano adotado pela Alemanha durante a hiperinflação nos anos 1920.
Quando a URV entrou em vigor, no dia 1º de março de 1994, a taxa Selic despencou dos 11.521,56% da véspera para 5.791,74%. Quando o real se tornou a moeda, em julho daquele ano, o índice caiu de 15.405,60% para 179,96%. Atualmente, a Selic está em 11,15%.
Aprendizado com fracassos anteriores
Santos ressalta que “esta ideia não era nova” — mas, antes, “havia o receio de que não fosse compreendida pelo público”. Àquela altura, contudo, depois de uma longa sequência de planos de estabilização fracassados, passou a ser vista como uma das duas únicas alternativas. “A outra seria a dolarização”, aponta o professor. “Em outras palavras, a experiência adquirida com as tentativas fracassadas de estabilização foi importante para o sucesso do plano”, acredita ele.
Professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing, o economista Fabio Pereira de Andrade elenca três pontos inovadores do Plano Real. Em primeiro lugar, ele não repetia a ideia comum aos projetos anteriores, que consistiam basicamente em “cortar três zeros” para reduzir o aumento dos preços.
Ele lembra ainda que tudo foi muito didático para a população. “[Destaco] o tamanho e a organizada campanha de comunicação, que cobriu instrumentos de propaganda institucional e, sobretudo, lançou mão da presença maciça do ministro Fernando Henrique Cardoso em programas de televisão para explicar e defender o plano”, comenta.
Por fim, ressaltou que o plano se iniciou pelo componente fiscal, com a criação do Fundo Social de Emergência. O instrumento atuou, de forma temporária, como solução para o déficit público.
Deu certo
Trinta anos depois, pode-se dizer que o plano foi bem-sucedido? “Depende da definição do objetivo [almejado]. Se era derrubar a inflação e mantê-la sob controle, foi um total sucesso”, pontua Santos. “Se era conviver com inflação e juros baixos, o sucesso do plano foi apenas parcial.”
Para o economista, a “dificuldade em alcançar este último objetivo pode ser imputada à questão fiscal que ainda carece de uma solução permanente”. “A recente reforma fiscal é um passo importante”, frisa.
“O plano funcionou, entregou resultado, sofreu atualizações, porém atualmente há desafios de aprimoramento do regime de metas de inflação, sobretudo para calibrar o peso da taxa de juros como principal instrumento da política monetária”, defende Andrade.
Para o historiador Rafael Maranhão, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie, “o plano cumpriu o seu papel”. “Tornou-se uma das principais políticas de recuperação vistas na parte sul do continente. Em quase dois anos, envolvendo os ajustes fiscais, embates políticos e reformulação de políticas bancárias, o Brasil saiu de um marasmo econômico acompanhado de autoritarismo e corrupção para um momento de estabilidade e novidade, pois em curso, havia um conjunto de políticas liberais para um novo brasil democrático e estável”, acrescenta.
A descontrolada inflação que o Brasil enfrentava foi um legado deixado pela ditadura civil-militar — que vigorou de 1964 a 1985. “Desde o fim do [chamado] ‘milagre econômico’ da gestão do presidente [Emílio Garrastazu] Médici [(1905-1985), que ficou no poder entre 1969 e 1974], o Brasil vinha colecionando índices altíssimos de inflação e quedas significativas no PIB [Produto Interno Bruto]”, explica Maranhão.
“O mercado externo referente à exportação se encontrava limitado devido às políticas de alinhamento do Brasil aos Estados Unidos, na Guerra Fria, obrigando o país a importar mais”, prossegue o historiador. “Nesse mesmo cenário, a dívida pública só aumentava e, de maneira geral, os países da América do Sul podiam ser resumidos em hiperinflação e dívida externa. O Brasil não era exceção.”
O economista Santos contextualiza que a inflação “era alta devido ao amplo processo de indexação da economia brasileira, que gerou o conhecido processo de inércia inflacionária”. “Este era o diagnóstico que fundamentava o plano Cruzado, o plano Bresser e o plano Real. O último deu certo porque incorporou o que se aprendeu com os erros dos anteriores.”
Quando o Real foi lançado, o componente político era o principal vetor das críticas. “A visão a respeito do plano refletia basicamente o alinhamento político da época. Havia quem acreditasse no plano e os céticos de sempre”, conta Santos. “Economistas desenvolvimentistas e os ligados ao [então pré-candidato do Partido dos Trabalhadores à Presidência, Luiz Inácio] Lula [da Silva] eram céticos e ficaram surpresos com o bom resultado alcançado, que inviabilizou a sua candidatura”.
Os resultados foram praticamente imediatos. A inflação no Brasil despencou de 47,5% em junho de 1994 para 6,8% em julho. A avaliação positiva do governo Itamar Franco (1930-2011) saltou de 12%, em novembro de 1993, para 37% em agosto de 1994 — de acordo com levantamentos realizados pelo Instituto Datafolha. FHC foi eleito presidente no primeiro turno, derrotando Lula com uma larga margem de vantagem — 54,3% dos votos, ante 27%.
No dia a dia
A estabilização monetária funcionou para trazer de forma quase plena a população brasileira para a sociedade do consumo. A constância dos preços possibilitou esse acesso, mesmo que a prestações. “Era importante estabilizar, pois para a população inflação é aumento do custo de vida, instabilidade financeira e incerteza quanto ao futuro”, pontua Andrade.
O economista Santos frisa que “inflação alta penaliza os mais pobres, que não têm mecanismos de proteger a sua renda da elevação diária dos preços”. Cenas de carrinhos de supermercado cheios e filas nas lojas no início do mês eram comuns na era anterior ao Real.
“O plano Real conseguiu a estabilização da economia, ainda que em patamar [de inflação] mais elevado do que o desejado em comparação a países do chamado Primeiro Mundo, mas muito abaixo da média histórica do Brasil”, ressalta ele.
“A simples redução da inflação e sua estabilidade no nível que se alcançou representa um ganho enorme para a população de baixa renda, melhorando muito o ambiente de negócios”, acrescenta ele.
De lá para cá, a tática de controle passou ser a política dos juros. “Quanto maiores as taxas, mais alto será o custo de qualquer empréstimo”, diz Andrade. “O que pode dificultar o acesso aos chamados bens de consumo duráveis, por exemplo, veículos.” Em suma: com juros altos, menos gente compra — e isto “controla” a inflação pela própria lei de oferta e demanda. Por outro lado, a calibragem precisa ser sutil — afinal, menos gente comprando significa uma economia girando menos, o que pode resultar em fechamento de empresas e aumento do desemprego.
Especialistas acham improvável que o Brasil volte a enfrentar, no futuro, um cenário de hiperinflação como houve até o início dos anos 1990.
“Risco de inflação sempre existe devido, por exemplo a um choque de oferta como foi o caso da pandemia [de covid] ou de problemas de demanda”, explica Santos. “Mas isto faz parte dos riscos administráveis em toda economia de mercado com boas instituições, como, felizmente, é o nosso caso.”
“[Mas] inflação galopante é um desafio que já vencemos”, acrescenta o economista. “O risco de retorno ao cenário anterior ao Real felizmente ficou no passado. Nosso desafio [atual] é crescer com distribuição de renda.” (Fonte: Edison Veiga/DW)